No já distante ano de 2013, a questão de infraestrutura e de mobilidade ganhou as páginas dos jornais e caiu na “boca do povo”. De lá para cá, a emergência em função de grandes eventos, como a Copa do Mundo, em 2014, e os Jogos Olímpicos, em 2016, traçou uma linha divisória com a concretização de alguns empreendimentos, mas o avanço foi paralisado pela aguda crise político-econômica que atingiu em cheio o país. Agora, o resultado das eleições presidenciais abre uma perspectiva positiva para o tema, trazendo o debate sobre a mobilidade urbana novamente à tona. Mas, o que esperar nesse sentido?
O jornalista e consultor Marcos de Souza é um ativista da causa da mobilidade urbana e atua por meio da ONG Mobilize. Criado em 2011 por Ricky Ribeiro – autor, ao lado de Gisele Mirabai, da autobiografia “Movido pela mente” – o Mobilize Brasil tem contribuído com vários estudos sobre o tema da mobilidade urbana sustentável. Dentre eles, destacam-se os trabalhos sobre calçadas e caminhabilidade, sinalização urbana, acessibilidade em transportes pú
No já distante ano de 2013, a questão de infraestrutura e de mobilidade ganhou as páginas dos jornais e caiu na “boca do povo”. De lá para cá, a emergência em função de grandes eventos, como a Copa do Mundo, em 2014, e os Jogos Olímpicos, em 2016, traçou uma linha divisória com a concretização de alguns empreendimentos, mas o avanço foi paralisado pela aguda crise político-econômica que atingiu em cheio o país. Agora, o resultado das eleições presidenciais abre uma perspectiva positiva para o tema, trazendo o debate sobre a mobilidade urbana novamente à tona. Mas, o que esperar nesse sentido?
O jornalista e consultor Marcos de Souza é um ativista da causa da mobilidade urbana e atua por meio da ONG Mobilize. Criado em 2011 por Ricky Ribeiro – autor, ao lado de Gisele Mirabai, da autobiografia “Movido pela mente” – o Mobilize Brasil tem contribuído com vários estudos sobre o tema da mobilidade urbana sustentável. Dentre eles, destacam-se os trabalhos sobre calçadas e caminhabilidade, sinalização urbana, acessibilidade em transportes públicos e outros pontos relativos ao transporte público e à mobilidade ativa.
De saída, Souza lembra que a nova legislação da Política Nacional de Mobilidade Urbana, de 2015, tem o objetivo de estimular os investimentos no setor. A seu ver – à exceção do Rio de Janeiro e de algumas linhas de BRTs (Bus Rapid Transit) em Belo Horizonte, Recife e Salvador –, o país “perdeu o bonde” da mobilidade e desperdiçou uma grande chance de modificar o perfil das grandes metrópoles. Não faltam exemplos negativos. “Monotrilhos, VLTs (Veículos Leves sobre Trilhos) e novas linhas de trens e metrôs ficaram apenas no projeto básico em cidades como Manaus e Brasília”, exemplifica. “Já Cuiabá iniciou os preparativos da Copa com o projeto básico de um BRT que acabou se transformando em um VLT, mas as obras foram paralisadas e as composições continuam paradas no terminal de Várzea Grande. Enfim, o resultado foi bastante frustrante para a população.”
A cidade de São Paulo, por sua vez, onde explodiram as primeiras manifestações contra o aumento da tarifa de ônibus em 2013 que depois incendiariam o país, contava com os projetos mais ousados em termos de mobilidade urbana. A extensa lista incluía desde a modernização dos trens urbanos que atendem sobretudo à Região Metropolitana, passando por novas linhas de metrô e monotrilhos, além do trem até Cumbica, conectado (parcialmente) ao Aeroporto de Guarulhos, e do insólito Trem de Alta Velocidade, que ligaria a capital a Campinas e ao Rio de Janeiro. “Algumas dessas obras estão sendo entregues agora, com grande atraso”, destaca Souza. “Algumas sequer têm data para retomada, enquanto outras foram totalmente abandonadas, como é o caso do trem-bala.”
Muitas obras seguem paralisadas pelo país, enquanto outras foram totalmente abandonadas
FALTA DE RECURSOS?
Para Ivan Metran Whately, diretor do Departamento de Mobilidade e Logística do Instituto de Engenharia (IE), as manifestações que sacudiram o Brasil em 2013 tiveram o mérito de colocar a questão da mobilidade no centro das discussões, mas o país ainda está muito longe de uma política focada em planejamento e integração. Na ocasião, as principais reivindicações foram a redução de tarifa e a tarifa zero. “Devido às manifestações, as tarifas foram congeladas na época, isto é, não sofreram o aumento de R$ 3,00 para R$ 3,20 que motivou o protesto originalmente. Todavia, houve aumentos sucessivos nos anos seguintes, ou seja: em 2015 passou a custar R$ 3,50, em 2017, R$ 3,80 e, em 2018, R$ 4,00”, ele relembra.
Já a outra reivindicação foi o mote dos organizadores do movimento que – pela própria falta de consistência – rapidamente perdeu força e sentido. Havia mais reivindicações, incluindo melhorias nos transportes, integração intermodal, expansão das linhas de metrô etc. “O que houve não foi uma mudança representativa no perfil do país, mas uma acomodação à situação existente e aos efeitos da crise financeira, que começaram em 2014”, ressalta Whately.
E nem sempre o que leva ao prejuízo e à ineficiência é a falta de investimento, mas também a falta de planejamento estratégico. O Rio de Janeiro por exemplo, sede dos Jogos Olímpicos de 2016, ganhou uma moderna linha de VLT na área do Porto Maravilha e várias linhas de BRTs, que em tese deveriam melhorar muito o transporte público na cidade. “Mas os problemas de segurança e a falta de conexões adequadas entre as linhas-tronco e os ônibus, que chegam ao centro vindos dos bairros, deixaram parte dos moradores à margem do transporte, alguns deles precisando realizar grandes caminhadas para chegar às estações dos BRTs”, acentua Souza. “E o que dizer dos teleféricos, que funcionam bem na Colômbia e na Bolívia, mas que estão paralisados no Rio de Janeiro, supostamente por problemas gerados pelo crime organizado?”, questiona-se.
Em Belo Horizonte, surgiram dois sistemas de BRTs: um estadual e outro municipal, que ademais não são integrados, como alerta Souza. E há mais exemplos. A cidade de Curitiba, notabilizada pelo pioneirismo de implantação dos BRTs, já sofria com o envelhecimento do sistema, mas acabou por ficar praticamente sem nenhum projeto. “O resultado foi um crescimento – talvez o maior do país – na taxa de motorização de seus moradores”, critica o ativista.
O caso de Curitiba é ainda mais curioso porque a cidade já foi considerada modelo de mobilidade urbana. Mas, como todas as cidades brasileiras, a capital paranaense sofreu um “inchaço” populacional que triplicou a população da região metropolitana. Assim, a demanda por deslocamento cresceu fortemente, o que passou a exigir um sistema de transporte pesado sobre trilhos, como o metrô. O problema é o custo desse sistema, em torno de – segundo a ONG Mobilize – 200 a 300 milhões de dólares por km. “E, como todos sabem, neste momento temos um país em crise”, lamenta-se o jornalista.
Curitiba já foi considerada modelo de mobilidade urbana, mas também sofre com o inchaço populacional
Para Whately, Curitiba ainda se destaca como um bom exemplo de investimento em mobilidade entre as metrópoles brasileiras. Segundo ele, além de planejar o transporte associado ao uso do solo, a capital paranaense projetou, financiou e implantou uma rede racional de corredores de ônibus, integrada às demais linhas de transporte da cidade.
A seu ver, os investimentos foram compatíveis com os recursos, gerando benefícios e qualidade de vida para a população, de modo que a rede de transporte curitibana estruturou o desenvolvimento da cidade. “Rio de Janeiro, Salvador, Fortaleza e São Paulo sofreram crescimento desordenado e os transportes sempre vieram a reboque da ocupação do solo”, avalia o diretor do IE. “Nestas cidades, há carência de planejamento integrado multimodal e de organização da destinação de recursos financeiros, tanto no que se refere ao orçamento de governo, quanto investimentos públicos e privados.”
QUESTÃO RELEGADA
Mas se esta é uma questão fundamental para a qualidade de vida da população urbana, porque é tão relegada pelos governantes? “Na prática, a maior parte dos gestores públicos ainda tem a cabeça presa à realidade do século passado, investindo muito em avenidas, viadutos, túneis e estacionamentos para automóveis”, destaca Souza.
A falta de manutenção das estruturas existentes também é um problema nas grandes metrópole
Nesse sentido, Whately recomenda aos novos gestores das metrópoles brasileiras encarar a questão sob duas vertentes: planejamento territorial e planejamento operacional. Para o especialista, é preciso que o uso do solo e a mobilidade cresçam paralelamente. “No primeiro caso, é preciso estruturar uma rede multimodal, intimamente associada ao uso do solo, definindo os grandes canais estruturadores da cidade e as taxas de uso e ocupação do solo, compatíveis com as demandas por mobilidade e atividades urbanas”, orienta.
Já no caso do planejamento operacional, o especialista avalia ser importante instituir uma Coordenação Metropolitana de Transporte com gestão tripartite (governo, operadores e população), com a finalidade de ordenar diversos pontos, como a integração modal, a regulação das linhas, o estabelecimento dos níveis de serviço, a padronização da comunicação, a avaliação centralizada do desempenho dos serviços, a canalização dos recursos financeiros, a coordenação dos níveis de oferta dos serviços (com eliminação de superposições) e a integração física e tarifária da rede, assim como a introdução de sistemas inteligentes para supervisão operacional. “Infelizmente, nenhuma metrópole brasileira dispõe de uma estrutura nos moldes das existentes nas principais cidades do mundo”, ressalta.
Como se vê, a questão é complexa. Desde os anos 1970 sabe-se que abrir espaço para o carro particular é algo que não resolve, pois em pouco tempo todas as pistas ficam repletas de veículos. A solução, como alertam os especialistas, passa pelo investimento em transporte coletivo, assim como pela otimização dos percursos de baixa, média e grande distância.
Além de rios e represas, o projeto do Hidroanel Metropolitano de São Paulo prevê um canal artificial, totalizando 170 km de hidrovias urbanas
Em São Paulo, como mostram estudos do Mobilize Brasil, cerca de 40% das saídas de carro percorrem menos de 2,5 km, sendo que os demais 60% não chegam a 5 km. “São distâncias curtas, que poderiam ser feitas a pé, de bicicletas, bicicletas elétricas, quadriciclos e até patinetes”, diz Souza. “Então, se o poder público investisse em calçadas, sinalização para pedestres, ciclovias e bicicletários integrados ao transporte público, em pouco tempo poderia estimular a opção dos moradores por reduzir o uso do carro.”
UTOPIA VIÁVEL
E já que sonhar é permitido, já pensou um dia atravessar a cidade de São Paulo do extremo Norte ao Sul em cerca de 30 minutos, sem nenhum congestionamento? Sim, isto poderá se tornar possível por meio do transporte fluvial.
Desde 2009, o governo paulista – em parceria com a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP) – vem desenvolvendo estudos de viabilidade técnica para implantação de um hidroanel metropolitano (leia Box na pág. 87). O objetivo é a implantação de hidrovias urbanas integradas ao sistema de ônibus municipais, que poderiam ser usadas tanto para o transporte de cargas como de passageiros. Em 2014, o projeto de redes hidroviárias foi incluído no Plano Diretor da cidade e até mesmo uma eclusa, que já existe, poderá ser integrada ao sistema.
Coordenador do Grupo de Estudos Metrópole Fluvial, da FAU/USP, o professor Alexandre Delijaicov é categórico ao afirmar que o principal problema do tráfego em São Paulo está na estratégia errônea, adotada no passado, de aterramento dos rios antes utilizados como principais meios de transporte na cidade.
Isso, segundo ele, criou uma dicotomia urbana: canalizaram-se os rios e entulharam-se as vias superficiais, muitas delas construídas sobre córregos, destruindo a paisagem e os veios de drenagem natural da cidade, resultando em enchentes e redução da mobilidade. “No Brasil, as grandes metrópoles têm características de acampamento improvisado”, diz o urbanista, destacando ser fundamental mudar o imaginário dos cidadãos (“refém dos automóveis”) e inverter a lógica de funcionamento da cidade, “com moradias, empregos e transporte público integrados, facilitando a convivência e a acessibilidade”.
PROJETO REINSERE RIOS URBANOS COMO VIAS DE TRANSPORTE
O projeto do Hidroanel Metropolitano de São Paulo prevê uma rede de vias navegáveis composta pelos rios Tietê e Pinheiros e pelas represas Billings e Taiaçupeba.
Integrada ao sistema de ônibus, rede de hidrovias urbanas poderia ser usada tanto para o transporte de cargas como de passageiros
Além dos rios e represas, prevê-se ainda um canal artificial, totalizando 170 km de hidrovias urbanas. O ousado projeto está alicerçado no restabelecimento dos rios paulistanos como principais eixos estruturadores da cidade, além de recuperar as margens do rio para o convívio, com infraestrutura de lazer e acessibilidade. Também pressupõe portos de origem e destinos na área urbana, facilitando não somente o transporte de pessoas, como também o de cargas. “Esse projeto reinsere os rios urbanos como vias para transporte, uso turístico e de lazer, além de contribuir para a regularização da macrodrenagem urbana”, destaca ao professor Alexandre Delijaicov, da FAU/USP. “Criam-se, assim, áreas funcionais e lúdicas para a população.”
Parece impossível, mas no mundo há um exemplo concreto de recuperação fluvial: o rio Sena, em Paris, que já foi considerado morto, atualmente está totalmente revitalizado, respondendo pelo transporte de 35 milhões de toneladas anuais de mercadorias transportadas. “A cidade é uma representação dos desejos dos seus habitantes, uma responsabilidade não só dos governantes, como de toda a população”, frisa Delijaicov. “Por isso, é fundamental pensar do ponto de vista ambiental, não como um acampamento improvisado, mas como o lugar em que habitamos e viveremos a maior parte de nossas vidas.”
Saiba mais:
FAU/USP: www.fau.usp.br
Instituto de Engenharia: www.institutodeengenharia.org.br
Mobilize Brasil: www.mobilize.org.br
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